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sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

São Paulo, uma cidade vibrante como o fogo




Gaston Bachelard dizia que o fascínio universal pelo fogo tinha a ver com suas propriedades tão poderosas quanto contraditórias. O fogo oferece proteção, abrigo, calor, conforto, aconchego. Também oferece perigo, dor, sofrimento e morte. São Paulo é fascinante e complexa como o fogo. Às vésperas de seu 462º aniversário, a cidade tem muito a comemorar... e a refletir.
Estamos falando de uma cidade que nasceu dinâmica, que já surgiu como ponto de encontro e troca entre viajantes, exploradores e aventureiros, religiosos e profanos, europeus e nativos, mercadores e escravos. Suas marcas de nascença são vistas até hoje. Contra seu fundo cinzento, São Paulo é multicolorida. O cinza austero é só um palco, ou uma tela, onde desfilam todas as cores, sabores, cheiros, emoções, sentimentos.
São Paulo não é só do Brasil. É do mundo. Sua vocação para cidade de encontro, de troca, de crescimento, continua mais viva do que nunca. Essa vocação se vê também na diversidade de línguas e culturas com as quais convivemos hoje. Essa é uma cidade de migrantes, de imigrantes, de refugiados. De gente que foge e se encontra. Que procura e acha. São Paulo é feita de quem nasce aqui e de quem vem e pelas mais variadas razões não pode ou não quer sair. Ela nos absorve e nós a absorvemos. Ela se torna uma parte de todos os que moram aqui. E todos nós fazemos dela o que ela é.
É justamente nessa riqueza e complexidade, nessa fricção e atrito, que São Paulo forja sua identidade como a do fogo. Assim como ele, ela é intensa. Ao longo de sua história ela acumulou títulos de “maior” nas mais diversas categorias: maior cidade e maior centro econômico do Brasil, maior comunidade de representantes de várias nacionalidades fora de seu solo nativo, maior número de pizzas consumidas mensalmente... e por aí vai. E como o fogo, São Paulo é cidade de extremos, de exageros, e também de contradições. Tudo aqui é grande: a alegria, o sucesso, as conquistas, as glórias, os infortúnios, as misérias, as ambiguidades. Grandeza e contradição são duas de suas principais marcas. Ela é, sem dúvida, o avesso do avesso.
Dentre seus muitos títulos, ela detém o de cidade com o maior número de falantes da língua portuguesa no mundo. Esse foi um dos motivos para sua escolha como lar para o Museu da Língua Portuguesa. Mas, lembremos, São Paulo é como o fogo, que tanto acolhe quanto destrói. Assim, além de ter sido o lugar ideal para abrigar o Museu, também foi o lugar que o presenteou com chamas. Por descuido, irresponsabilidade (ou, pode-se dizer, por maldade, já que ela se manifesta de muitas formas), São Paulo queimou um de seus grandes patrimônios. E no processo destruiu ainda um bem mais valioso que qualquer museu: uma vida humana.
A cidade brilha tanto como um repositório quanto como um gerador de cultura para o Brasil e o mundo. Mas quantos outros patrimônios culturais de São Paulo estarão hoje também à beira do colapso? O estado do Museu do Ipiranga é um bom indicativo. E olhando para nosso legado cultural de forma mais ampla, alguém tem notado algo acontecendo nas escolas públicas de São Paulo? Elas não estão também queimando lentamente?
E para além da cultura e da educação, quantas outras vidas estão se perdendo de forma banal nesta cidade de tantas oportunidades de “fazer a vida”?
O incêndio do Museu da Língua Portuguesa, a pouco mais de um mês do aniversário da cidade, serve como símbolo da relação ambígua de São Paulo com seu patrimônio cultural e humano. Ela acolhe e abandona, cria e destrói, dá a luz e mata. Ele também nos convida à reflexão e a uma mudança de postura. É bem provável que os poderes públicos, nos níveis municipal, estadual e federal, continuem em sua indiferença (ou, na melhor das hipóteses, atenção insuficiente) aos problemas culturais e humanos da cidade. Mas São Paulo é feita por cada um de nós e todos temos uma parte em fazer dela o que ela é. Cada um tem responsabilidade em fazer com que ela seja a melhor versão possível de si mesma.
Uma coisa é certa. São Paulo seguirá em sua vocação de ser grande. Cabe a nós decidir: grande em quê?
           
Rodrigo Franklin de Sousa - Doutor em Letras pela Universidade de Cambridge e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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