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sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Uma milenar demagogia judiciária





Os romanos edificaram o direito e não se esqueceram das saídas de emergência para os juízes, integrantes do patriciado. Distinguiram, assim, duas espécies de possíveis erros dos juízes: "error in procedendo" e "error in judiciando". Em bom português: erro de procedimento e erro ao aplicar o direito. Com consequências completamente diversas: o erro de procedimento é a má condução do processo, a inversão de seu caminho natural, a negligência em seu impulso, não raro conduzente à estagnação de seu andamento, em detrimento do interessado. Já o erro de julgamento implica no ponto de vista do juiz, absoluto em sua autonomia, ainda que o entendimento do direito aplicável beire o estremecedoramente herético e despropositado.
O erro de procedimento permite a intervenção da respectiva Corregedoria ou do Conselho Nacional de Justiça, com consequências nada agradáveis para os magistrados; já os erros no modo de compreender o direito e aplicar a lei são procedimentos absolutamente respeitados e as derrapagens permanecem incólumes.
Assim, diz-se, fica garantida a convicção intocável do juiz ao interpretar e aplicar a lei. Valor democrático, republicano. Se equivocada a decisão, o inconformado dispõe de uma gama de recursos para modificar a decisão desencontrada dos princípios da ciência do direito. É esdrúxulo pensar-se em punir um juiz por suas posições. Desse modo fluem as coisas da Justiça, desde eras priscas. Mas, nem sempre: o Código de Hamurabi punia o juiz equivocado, inclusive com penalidades extremamente graves. Foi superado o controle da administração do direito no curso civilizatório.
Não faz mal, porém, um pouco de saudade do código da sexta dinastia babilônica. Merece o cidadão, em reverência servil aos juizes, suportar às costas uma decisão juridicamente monstruosa? Na prática processual o adjetivo "monstruoso" é paliativamente substituído por "teratológico", que, como é óbvio, provém de "teratologia", que é o estudo das monstruosidades e, não, as mostruosidades. No entanto, deixemos de barato a semântica incorreta para classificar um ato incorreto.
Vamos a um exemplo curial. Um juiz negligente, com a devida ressalva e respeito aos dedicados homens cultos e de bem que são exemplos de virtuosismo no apararato judiciário, vê-se apertado por não julgar ou sequer processar, amiúde ao longo de anos, uma causa, de nenhuma importância para ele, mas que pode determinar o sonho intranquilo das partes em todas as noites. Para fugir de sua responsabilidade, emite um sentença qualquer,  ainda que monstruosa sob o aspecto da legalidade, da doutrina e da jurisprudência. Está salvo e volta a dormir o sono dos justos. A parte vencida que recorra, recolha as custas do recurso, conte com um advogado devidamente preparado para sustentá-lo e aprenda a dormir com o diabo até o julgamento de segunda instância ou, ainda, das superiores. Se ao final, o inicialmente vencido for vencedor, certamente atravessou vários anos de sua vida num lodaçal fétido de abominável falta de qualidade de vida. Esses anos perdidos, porém, nada significam para a espessura epidérmica de espinhos dessas figuras indignas do Judiciário. Talvez incomodassem a sensibilidade de Proust.
Conclui-se que, se o juiz proferiu um pronunciamento deformado, mas decidiu o caso e escapou de censura, bem caracterizada a ignomínia, que não é difícil de ser apurada pela experiência dos juízes corregedores, não deveria escapar dos efeitos do erro de procedimento. A decisão inconsequente, errônea, lamentável não poderia passar em branco. Causou um prejuízo ao ser humano ou a um grupo que dela dependia e é princípio elementar de direito que todo aquele que provoca um dano deve repará-lo.
Não pensem que falamos de uma tempestade rara. Essa modalidade de fazer errado, mas fazer, muitas vezes conscientemente, é um ato corriqueiro em nosso Judiciário, sobretudo depois do advento do Conselho Nacional de Justiça. Este, pressionado, principalmente pelo Supremo Tribunal Federal, firmou o entendimento de que não pode se intrometer em erros de julgamento. E, desse modo, ficou legitimada a prática fugidia dos maus juízes. Esquecemo-nos de  que a conduta pedestre e inconsequente de juízes, voltando ao Código de Hamurabi, era considerado algo tão grave que, em certas hipóteses, a punição era a morte.

Amadeu Garrido de Paula - advogado especialista em Direito Constitucional, Civil, Tributário e Coletivo do Trabalho

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